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Linguagem de cartolas

Pelé e Havelange juntos?

Pelé e Havelange juntos?

João Havelange presidiu a Fifa – entidade máxima do futebol – por 24 anos e usou da experiência comprovada com título de dirigente do século (recebido em 1999) para conceder uma dura declaração à coluna Gente Boa, no Globo de hoje. Desconsiderando a capacidade de seu ex-genro, Ricardo Teixeira, que preside o comitê gestor do Mundial de Futebol de 2014, disparou: “O dinheiro acabou. Todos os que se apresentaram como construtores para fazer estádios no Brasil para a Copa, já tiraram o time de campo. Não haverá estádios novos, mas apenas reformados. O BNDES não vai liberar verba para a construção”. O ex-prefeito do Rio, César Maia, replicou, em seu blog/mailing e o bochicho só vai crescendo.

É a bomba do dia, no mercado do esporte, para além das negociações do período de janela aberta do futebol europeu. Havelange mostra uma dura realidade e, se verdadeira, veremos, nos próximos dias, um Teixeira cabisbaixo nas ante-salas dos gabinetes de Brasília, com pires na mão e com o orgulho ferido.

Ricardo Teixeira tem dado de ombros pra grande parte dos políticos, até então, dizendo que a Copa não verá dinheiro público, na construção dos estádios (aqui, no UOL, mais sobre a questão de gastos públicos). Muitos governadores e prefeitos já desmentiram e prevêem os gastos no orçamento dos próximos anos, chorando a sangria inesperada.

E justo Havelange, pra dizer tal bomba!

 

Como se sabe, o carioca João Havelange é o membro decano da COI – com mais tempo no quadro de votante. Tem um histórico que, seguramente, moldou a anedótica, porém inatingível esfera da cartolagem. Um golpe desse, na candidatura do Rio para os Jogos de 2016, e tudo estaria perdido para os brasileiros, na eleição de 2 de outubro.

Mas o dirigente do século (ao lado de Juan Antonio Saramanch e Pierre de Coubertin), que completará 100 anos exatamente em 2016, carrega a bandeira do Rio como um último ato e, por enquanto, é das forças motoras da campanha brasileira, talvez a mais influente, num universo onde a linguagem da cartolagem só é entendida pelos seus pares.

O Michel Castellar, do Lance!, revelou (aqui) que Havelange escreveu e está remetendo cerca de 100 cartas para cada um dos membros do COI, com mensagens personalizadas e pedidos que denotam as relações pessoais do ex-dirigente. O cartola mor tem cobrado os favores concedidos no período em que mandou no futebol e enriqueceu muita gente.

Da lista de Havelange, impossível de ser mensurável, se conhece algumas afinidades, como na sua proximidade com o presidente da FIFA, Joseph Blatter, e com o ex-presidente do COI, Juan Antonio Samaranch (estendida ao filho desse espanhol, votante, em caso de derrota de Madri, nos primeiros “turnos” da votação de Copenhague).

Havelange elegeu Blatter, contra tudo e todos, em 1998. Deixou a Presidência da FIFA, tendo criado um complexo de entretenimento que não valia nada, quando de sua primeira eleição, em 1974. O esporte era deficitário e passou a movimentar cerca de 250 bilhões de dólares por ano, na data de sua saída. Foi uma história de sucesso, para além das verdades dos detratores.

O sueco Lennart Johansson, então presidente da Uefa, era favoritíssimo ao cargo máximo do futebol, no fim dos 90. Tanto que Havelange teria desistido de concorrer a mais um pleito, com medo da derrota. Mas, contra essa suposição, o brasileiro foi ao ataque e fez Blatter seu sucessor. E o fez sozinho praticamente sozinho.

Veja bem: com votação entre cartolas do mundo inteiro, ganhou a confiança dos africanos, arrematou todos os votos das Américas e até da blindada zona européia, sob controle de Johansson. A eleição era fechada, mas reportagens da época apuraram as artimanhas de Havelange, que conseguiu ainda uma aproximação com Michel Platini, que seria uma espécie de embaixador da campanha de Blatter.

O ex-jogadorzaço francês era uma resposta ao cabo eleitoral de Johansson, um senhor chamado Pelé, no período de maior confronto entre Havelange e o maior jogador brasileiro de todos os tempos. O cartola venceu e o rei do futebol ainda amargou sua maior saia justa, durante o périplo da escolha do presidente da FIFA. Chamou Platini, na ocasião, de perdedor e recebeu uma resposta tão polida, quanto esmagadora: “É uma honra saber que o maior jogador da história conhece meu nome”, respondeu o francês, com elegância.

Na escolha de Blatter, uma sequência de escândalos, como se vê no livro “Cartão Vermelho”, de Andrew Jennings. Esse jornalista inglês conta que até hoje o brasileiro carrega uma carta de crédito ilimitado, patrocinado pela FIFA, muito por conta dos serviços prestados não à entidade, mas aos homens que hoje a dirige. Há suspeitas de toda ordem que inclui a participação do marketing. Pois a montanha de dinheiro erguida na gestão do brasileiro, foi repartida ali mesmo, no entendimento de Jennings. Havelange, nesse livro, se perpetuou com a ajuda de graúdos da indústria do esporte, como o ex-dono da Adidas, Horst Dassler.

O alemão morreu em 1987, mas teria preparado o terreno para o mais longo e promíscuo relacionamento de mercado entre cartolas e empresários. Para além disso, essa história de marketing esportivo teria nascido aqui, como conta o livro “Invasão de Campo” (Ed. Zahar, 362 págs.), de Barbara Smit, que traça a história dos irmãos criadores das marcas Adidas e Puma, rivais eternos. Horst Dassler é filho do criador da primeira, Adolph (o Adi que deu origem ao conhecido nome), que elevou a marca das três listrinhas ao patamar que conhecemos hoje.

Pois Horst Dassler é o símbolo maior da relação desses cartolas todos com o “movimento olímpico” que não conhecemos. Ele foi criador da ISL, uma das principais agências de marketing esportivo do mundo, que faliu em 2002, muito depois da morte de seu empreendedor, envolvida numa rede de escândalos com apuração policial que ainda não terminou.

Horst Dassler, como se sabe, elegeu Havelange em 74, com a promessa de injeção de recursos na FIFA, e também moldou a nova ordem do COI, tendo eleito Juan Samaranch, em 1980. O dono da Adidas e Havelange, se sabe hoje, impulsionaram o COI que vemos com a força de principado, a partir da eleição do espanhol.

Daí, constatar, sem surpresa, as “amizades dentro do COI” declaradas pelo dirigente do século, pelo ex-sogro de Ricardo Teixeira (dizem que ficou mágoa, mas Havelange poupa o presidente da CBF de críticas), pelo decano que pode não votar, no próximo 2 de outubro – caso o Rio chegue à disputa final pela sede de 2016.

Os bastidores de uma eleição como essa – secreta e repleta de gente de culturas tão distintas, quase todas movidas por dinheiro e poder, não serão completamente dissecados pela mídia, mesmo com a aproximação do pleito. Podem surgir em polêmicos livros não-autorizados, nas próximas décadas, sem a voz oficial que prefere o silêncio.

Havelange tem feito tudo dentro dessa regra do silêncio, falando a língua da cartolagem que ele conhece tão bem e (incrível!), num movimento contínuo ao lado de gente impensável, em décadas anteriores, como seu maior desafeto, o rei Pelé.

Cada eleição é mesmo diferente.